CÂMARA PODE APROVAR LEI PARA COMBATER TORTURA

Há poucas coisas tão inomináveis como a tortura. O ato de constranger alguém usando violência ou ameaças com o objetivo de obter informações ou declarações, impondo sofrimento físico ou moral, comprometendo sua dignidade e desintegrando o indivíduo ainda é usado em larga escala no país. Por “bandidos” e “mocinhos”, com a diferença crucial que o Estado, não pode, de maneira alguma, utilizar-se métodos de bandidos. Tanto por sua natureza criminosa e aviltante, quanto pelo risco da prática, uma vez abraçada pelos agentes públicos, ser institucionalizada e vir a se repetir em outras situações como instrumento de interrogatório ou de punição.
Tenho a impressão que parte da população, cansada da violência, apoia esse tipo de prática abominável. E o impacto desse apoio se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A ponto de ser banalizada em filmes como Tropa de Elite, em que parte de nós torceu de corpo e alma para os mocinhos que usavam o mesmo tipo de método dos bandidos no afã de arrancar (ou construir) “verdades”.

Como já disse aqui anteriormente, a justificativa que damos para nós é a mesma usada nos anos de chumbo brasileiros ou pela democracia norte-americana quando questionada sobre as prisões no Iraque e em Guantánamo, em Cuba: estamos em guerra contra aqueles que querem destruir nosso modo de vida. Ninguém explicou, contudo que essa guerra é contra os valores que nos fazem humanos e que, a cada batalha, vamos deixando um pouco para trás.
Uma proposta tramitando no Congresso Nacional pretende combater a tortura contra as pessoas privadas de liberdade, grupo que o problema é sério e ignorado. O projeto de lei número 2442/2011, apresentado pelo Poder Executivo e que está para ser votado na Câmara dos Deputados, cria uma rede de vigilância e troca de informações sobre a ocorrência desse crime, envolvendo governo e sociedade civil e uma comissão com poderes para verificar as condições de locais de privação de liberdade. O objetivo não é apenas correr atrás do prejuízo, mas prevenir essa prática.
Isso não inclui apenas presídios, casas de detenção e delegacias, mas também locais de detenção de adolescentes (Fundação Casa, por exemplo) e centros de internação psiquiátrica. Pois, por mais que existam avanços na substituição dos manicômios por outro modelo não segregador, há muitos casos de tortura nessas instituições. Todas essas pessoas são estigmatizadas pela sociedade, pelo que fizeram ou pelo que são. E, com isso, essa violência, não raro, acontece com nossa anuência.
Este blog entrevistou Ana Paula Diniz de Mello Moreira, coordenadora geral de Combate à Tortura, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, sobre a questão da tortura no Brasil e o projeto de lei:
No Brasil, onde a tortura é prática corrente? Quem são os principais afetados?
O ato de constranger alguém mediante violência ou grave ameaça segue sendo rotina nas denúncias de violações praticadas por agentes do Estado em muitos espaços institucionais onde há relação de poder e vulnerabilidade em razão do cerceamento do direito de ir e vir. Por exemplo, estabelecimentos relacionados com segurança pública (como penitenciárias, delegacias, hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e instituições socioeducativas), acolhimento de pessoas, locais de tratamento de saúde, entre outros.
Apesar de não haver dados nacionais a respeito, tenho a impressão de que um grande número de brasileiros vê a tortura com certa simpatia.
A prática da tortura no Brasil está muito caracterizada como ocorrência do período ditatorial recente. De uma certa forma, a prática da tortura passou despercebida para uma sociedade jovem e de meia idade que ingressou no mundo adulto em tempos de estado democrático de direito, que não vive sob o discurso da segurança nacional como razão para justificar quaisquer práticas de controle, dentre elas a tortura. Parece que a tortura se atualizou e a sua prática tornou-se ferramenta para garantir a segurança pessoal e, de uma forma invertida, passa a ser justificada pela ótica da reparação de uma transgressão à lei.
Informações que são costumeiramente veiculadas pelos meios de comunicação, bem como algumas pesquisas sobre violência no país, têm sugerido certa tolerância da população quando as práticas de tortura são utilizadas como forma de resposta a ações violentas, especialmente aquelas de repercussão nacional. Destaca-se a recente pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, que demonstrou que, para obter informações em determinados casos, a polícia estaria autorizada a cometer certas violações como bater, privar de alimentação e água, ameaçar, bem como dar choques e provocar queimaduras.
Considerando isso, quais são os maiores entraves para banir a tortura do país?
Com sistema de justiça criminal e segurança pública implementado, os 15 anos da Lei 9.455/97 (que tipifica o crime de tortura), ainda são frágeis os recursos que garantem a proteção às pessoas que se encontram vulneráveis por se estarem privadas de liberdade, bem como a responsabilização dos perpetradores.
É necessária a criação de mecanismos e equipamentos que possibilitem um melhor monitoramento e controle externo social de lugares de privação de liberdade, em especial aqueles que possuem características de instituições totais. Baseados em relatórios de observadores internacionais, também verificam-se recomendações sobre o devido acesso à Justiça como entrave na consolidação de proteção e combate a violação de direitos.
Por que é importante aprovar o PL n.º 2.442/2011?
O PL 2442/11 introduz dois novos conceitos para a estruturação de uma política de prevenção e combate à tortura, além de recompor o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. São eles:
– O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Ou seja, a estruturação de uma rede integrada e articulada de órgãos e entidades públicas e privadas para promover, pelo controle externo, a defesa das pessoas privadas de liberdade, em especial, para prevenir a prática da tortura, assegurando a dignidade da pessoa humana;
– E o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, prevendo a criação de instrumento de características de autonomia, composto por 11 peritos, com a prerrogativa de visitar locais de privação de liberdade para prevenir a tortura (e não somente reagir à sua ocorrência) por meio do monitoramento regular e periódico dos locais de privação de liberdade.
É importante destacar que a sua atuação volta-se, exclusivamente, para a política de prevenção à tortura pelo monitoramento dos locais de privação de liberdade, relatórios de visitas, recomendações às autoridades públicas ou privadas, buscando o diálogo e uma ação propositiva para a construção de estruturas de proteção aos direitos humanos das pessoas nestes locais.

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