35 anos de “Brasil: Nunca Mais”. Por Marcelo Schneider
“Brasil: Nunca Mais”, o livro que tornou pública uma vasta coleção de documentos oficiais sobre episódios de tortura perpetrados pelo regime militar no Brasil entre 1964 e 1979, completou 35 anos no dia 15 de julho.
O projeto “Brasil: Nunca Mais”, desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI) através do trabalho de Charles R. Harper e da Arquidiocese de São Paulo na década de 1980, foi coordenado localmente pelo Rev. Jaime Wright e pelo Arcebispo Paulo Evaristo Arns, com apoio ativo do rabino Henry Sobel.
A iniciativa tinha três objetivos principais: evitar a destruição de processos judiciais de julgamentos políticos ao final da ditadura militar; obter informações sobre tortura praticada pelo aparato repressivo do Estado; e disseminar essas informações para que elas tivessem um papel conscientizado na sociedade brasileira.
Depois de examinar quase 850.000 páginas de processos legais envolvendo presos políticos, os pesquisadores elaboraram relatórios e editaram o livro com o mesmo nome, descrevendo práticas de tortura e outras violações graves de direitos humanos que ocorreram durante aquele período. As informações foram obtidas a partir de depoimentos de réus em tribunais militares que, quando interrogados, denunciaram e detalharam as práticas de violência física e moral que sofreram ou testemunharam nos períodos em que foram detidos nas prisões das Forças Armadas.
Uma das idéias engenhosas do projeto foi usar documentos oficiais do próprio Estado para provar a prática repetida e institucionalizada de tortura usada em interrogatórios e repressão durante o regime militar.
Em 15 de julho de 1985, quatro meses após a restauração do regime civil no Brasil, o livro “Brasil: Nunca Mais” foi lançado. Sua publicação foi destaque na imprensa nacional e internacional e o livro, que já ultrapassou sua 40ª edição, permaneceu na lista dos mais vendidos do país por 91 semanas consecutivas.
Temendo que as instituições de repressão política pudessem destruir esse material de pesquisa, o CMI manteve cópias em seus arquivos em Genebra e enviou cópias microfilmadas para os Estados Unidos, onde foram armazenadas na cidade de Chicago pelo Latin American Microform Project, que é parte do renomado Center for Research Libraries (CRL).
Muitos anos depois, em 2010, quando eu trabalhava como assistente do moderador do Comitê Central do CMI, Rev. Dr. Walter Altmann, o Procurador Regional da República Dr. Marlon Weichert fez contato com o CMI e apresentou a ideia do processo de digitalização de todos os documentos. Começamos, então, a trabalhar em estreita colaboração com ele e o CRL na organização do repatriamento de registros, levando em consideração as fortes evidências de que estes já haviam desaparecido dos arquivos mantidos pelo Supremo Tribunal Militar.
Em junho de 2011, o secretário geral do CMI, Rev. Dr. Olav Fykse Tveit, e o Rev. Dr. Walter Altmann, acompanhados por vários líderes de igrejas locais e regionais, entregaram, durante ato público em São Paulo, aos promotores públicos brasileiros três caixas contendo cópias de todos os documentos do projeto “Brasil: Nunca Mais”.
Eu estava lá e vi quão cheio estava o auditório do Ministério Público e quão grande era a cobertura da mídia naquele dia. Mas o aspecto mais notável dessa cerimônia para mim foi o sentimento de responsabilidade mútua e esperança que havia no ar.
Nina, neta de Charles R. Harper, recebeu um forte aplauso de todos em nome de seu pai, morto em 2016, num gesto de gratidão por seu incansável trabalho como coordenador do CMI para os direitos humanos na América Latina de 1973 a 1992.
Como parte da cobertura do CMI do evento, fiz entrevistas rápidas com alguns dos oradores, mas foram as palavras de Altmann e Tveit que resumiram melhor o significado do que acabara de acontecer para o movimento ecumênico:
“Esta é um marco importante para o povo e a nação brasileira e tenho orgulho do papel que o CMI desempenhou e continua a desempenhar”, disse Altmann. Tveit acrescentou que a ocasião superou suas expectativas: “Isto mostra o valor do que mantemos em nossos arquivos, mas também que é essencial trabalharmos juntos. Ao revisar essa história e a realidade do que aconteceu, vemos mais claramente o papel do movimento ecumênico nessa questão em particular, oferecendo apoio a pessoas e igrejas e fornecendo uma estrutura para uma ação eficaz.”
A maioria de nós voltaria a se reunir naquele mesmo auditório em agosto de 2013, quando foi lançado o site “Brasil Nunca Mais Digit@l”, possibilitando acesso gratuito a mais de 900.000 páginas de registros oficiais relacionados ao projeto. O destaque daquela cerimônia foi quando o site foi lançado oficialmente com um clique por Sonia Wright, filha do Rev. Jaime Wright.
Todo o processo de repatriação dos documentos, sua digitalização e tudo o que estava envolvido nesta segunda fase do projeto, juntamente com os eventos de 2011 e 2013, parecia marcar um novo período na busca do Brasil por reconciliação nacional após tempos turbulentos marcados por repressão e violência. O clamor do “nunca mais” já parecia uma realidade.
O tempo passou e muitas coisas mudaram desde então. A vasta coleção de declarações e atos antidemocráticos proferidos pelo presidente Jair Bolsonaro e seus aliados mais próximos nesta turbulenta primeira metade de mandato frequentemente suscita grande preocupação entre aqueles que lutaram arduamente para defender a democracia e a proteção incondicional da dignidade humana e a participação de todos, especialmente dos mais pobres, no destino do país.
Nesse contexto, a lembrança dos 35 anos do lançamento da primeira edição de “Brasil: Nunca Mais” adquire um significado profético.Talvez algumas histórias tenham que ser contadas repetidas vezes para que todos saibamos que elas nunca devem se repetir.
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*Marcelo Schneider trabalha no departamento de comunicação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), onde é responsável pela cobertura do trabalho do escritório do CMI junto às Nações Unidas em Nova Iorque e das áreas programáticas do CMI nos temas de justiça climática, direito humano à água, justiça econômica, formação e educação ecumênica e a peregrinação de justiça e paz.
Publicado originalmente na página da CONIC.
https://conic.org.br/portal/noticias/3611-35-anos-de-brasil-nunca-mais-por-marcelo-schneider