Itaipu na ditadura: mais de 100 operários mortos e 43 mil acidentes na construção

A truculência militar ostentada no processo de construção de Itaipu deixou como legado episódios trágicos como o operário Francisco Nunes Marques, que era funcionário da empresa Adolpho Lindenberg, uma das construtoras da hidrelétrica.

Registros mostram que, no dia 28 de abril de 1975, Marques, após ter sido despedido, foi impedido de entrar na fila para apanhar sua marmita de jantar. Ao reclamar do bloqueio, foi agredido a pauladas por quatro funcionários da empresa e, por fim, acabou baleado. O operário chegou a ser conduzido ao Hospital São Vicente de Paula, mas morreu.

Outro capítulo sombrio diz respeito ao médico paraguaio Agustín Goiburú, que esteve sob constante vigilância das AESIs de Itaipu. Goiburú consta, até hoje, como um dos desaparecidos políticos da ditadura de Alfredo Stroessner, a ditadura militar paraguaia, que durou de 1954 a 1989. Segundo os pesquisadores, Goiburú foi alvo de forte monitoramento no ano de 1976, tendo o comando Itaipu recebido informações constantes de sua presença.

A documentação referente a Itaipu aponta para a conexão da estatal com órgãos repressivos do Cone Sul atuaram no âmbito da Operação Condor, em ações secretas internacionais.

Aliança de ditaduras militares que governavam os principais países da América do Sul, a Operação Condor realizava troca de informações sigilosas com o propósito de perseguir pessoas contrárias aos regimes ou ligadas ao comunismo.

“Há documentos que relatam uma suposta ‘infiltração comunista’ nos diversos setores das atividades. Havia um monitoramento cruzado, com intercâmbio sistemático de informações. Empregados tinham que saber fazer cifragem e decifragem de documentos”, diz a pesquisadora Jussaramar da Silva.

Arquivo NacionalArquivo Nacional
Documento de Itaipu sobre ‘infiltração comunista’
Bloqueio de informações
Os relatos colhidos pelos pesquisadores apontam a atuação direta da estatal Itaipu no âmbito da ditadura, mas as restrições de acesso a documentos impostas até hoje aos pesquisadores prejudicaram o resultado do trabalho, impossibilitando que se tenha uma visão mais horizontal do que se passou na construção da hidrelétrica naqueles anos.

Carla Silva, pesquisadora e coordenadora do trabalho, afirma que foram apresentados vários pedidos de acesso ao acervo completo de informações, mas que foram negados pela estatal. Em uma resposta enviada aos pesquisadores para rejeitar o pedido, Itaipu declarou que um dos membros do grupo já tinha solicitado informações no passado e que, por isso, não liberaria o acesso novamente.

“Usaram isso como justificativa, mas isso não tem nenhum fundamento”, diz Carla. “Não tivemos acesso a todo o material de Itaipu. Por mais que tenhamos solicitado, foram indeferidos os nossos pedidos de informações. Sabemos que a estatal tem a documentação organizada, mas não fomos atendidos.”

Dadas as limitações impostas pela empresa, os pesquisadores passaram a recorrer a todas as bases de dados oficiais possíveis e conseguiram, ainda assim, reunir e analisar cerca de 10 mil documentos. “Foi mais fácil pesquisar na Argentina e Paraguai do que em Itaipu. Fomos ao centro de documentação que pertence ao Ministério da Justiça do Paraguai, o ‘Arquivo do Terror’, que guarda documentos da Operação Condor. Encontramos muita coisa.”

A Pública questionou por que Itaipu não garantiu acesso irrestrito ao material solicitado e encaminhou à estatal o próprio indeferimento. Em nota, a hidrelétrica não explicou a negativa e declarou que “a atual gestão da Itaipu Binacional (margem brasileira) tem interesse em esclarecer quaisquer questões de interesse público que envolvam a empresa”.

Segundo a empresa, é mantido um canal aberto na internet para receber e analisar pedidos de informação, “com o compromisso de responder no menor prazo possível”.

O acervo sobre Itaipu com documentos e testemunhos faz parte de um relatório inédito da Unifesp/Caaf que será enviado ao MPF e que pretende servir de base para ações de reparação a vítimas da repressão na ditadura militar. 

Reparações históricas em aberto
Quem visita hoje a usina de Itaipu se depara com uma história de vitórias e força contada por homens desbravadores que tiveram a sua imagem sintetizada na imagem do “Homem de Aço”, uma escultura de duas toneladas, construída pelos operários da hidrelétrica com pedaços de sucata de maquinários, nos anos 1980.

Para os pesquisadores e milhares de atingidos pela obra, porém, a imagem do barrageiro “Nicão”, como a escultura passaria a ser conhecida, não conta toda a história do que se passou no local, e isso precisa ser reparado, tanto por meio de indenizações quanto por meio de reparações históricas. A criação de um centro de memória da construção da usina de Itaipu – que expresse as violações cometidas contra os trabalhadores e populações expropriadas – é uma dessas demandas.

(Deu na Revista Puúlica de 19 de junho de 2023
Texto André Borges