Entrevista padre henzo a gazeta do povo

ENTREVISTA
“O perigo de um novo regime de opressão se instalar no país ainda existe”

Fabiula Wurmeister,
da sucursal da Gazeta do Povo

“Peregrino das catacumbas”, para a opinião pública, e “louco”, para os companheiros clérigos, o padre italiano Renzo Rossi está entre os personagens mais influentes no movimento pelo fim da perseguição aos ativistas políticos que lutaram contra a ditadura militar que se instalou no Brasil entre 1964 e 1985. Missionário, visitou 14 prisões onde eram mantidos os perseguidos do regime e levou aos organismos internacionais, às nações europeias e às autoridades brasileiras a necessidade urgente de se instituir uma anistia ampla, geral e irrestrita no país. No aniversário de 31 anos da promulgação da Lei 6683/79, a Lei da Anistia, comemorados neste sábado, padre Rossi fala sobre a experiência junto aos presos, do papel da Igreja Católica no combate à ditadura, do amadurecimento do povo brasileiro e do respeito aos direitos humanos.

Pe. Renzo Rossi, 85 anos

Qual a avaliação do senhor para esses 31 anos da Lei da Anistia? Ela atendeu às necessidades da época, foi respeitada em todo o seu teor?
Eu deixei o Brasil em 1997, quando ela havia completado 13 anos. Por isso, não acompanhei toda a evolução. Mas, o reconhecimento da anistia e a recompensa aos perseguidos, isso sim aconteceu. O que eu percebo é que, apesar de tudo o que houve, as pessoas ainda não dão a importância necessária que o assunto merece, não se interessam. Isso é resultado de uma das falhas na luta contra a ditadura. Salvo a generosidade daqueles que foram perseguidos e dos que morreram, que considero santos, o movimento não ajudou a sensibilizar o povo de verdade. O povo estava fora. Essa foi desde o início uma luta de elite.

Que importância a Lei da Anistia teve para a democracia brasileira?
Falo disso com um pouco de vaidade. Fui o único homem com um grupo de mulheres a fundar o movimento feminino pela anistia, em Salvador, na Bahia, em 1977. Era somente permitido a elas participar. Foi muito importante essa mobilização inicial. A ditadura militar não caiu em 1985 somente por pressão do movimento pela anistia, mas principalmente pelo movimento.

Diante do que o senhor acompanhou e do que sabe hoje da política brasileira, ainda há chances de vivermos outra vez os anos de terror?
Sim. O perigo de um novo regime de opressão se instalar no país ainda existe. Mas, talvez não seja maior porque a consciência popular aumentou bastante. E, diante de alguma ameaça parecida, o povo se revoltaria. Por isso, como foi naquele tempo, acredito que não se repetiria com aquela mesma força. Entendo que o perigo não estaria em um novo golpe militar, mas em atividade obscuras do governo com a participação silenciosa de militares. Por necessidade histórica, o presidente Lula não conseguiu se libertar de algumas alianças, tudo na tentativa de com o PT ser maioria no Congresso e poder governar.

Qual foi o papel da Igreja Católica no movimento pela anistia?
Isso é um pouco delicado. A Igreja Católica, tendo medo que o comunismo ocupasse o governo, que o golpe de que se falava seria comunista, se apoiou inicialmente com os generais. Quando perceberam que os militares é que comandaram o golpe, não se afastou imediatamente, levou um tempo. Alguns bispos se conscientizaram da situação e se opuseram. Dentro da Igreja essa conversão foi muito lenta, com algumas iniciativas nas comunidades de base, nos grupos dos dominicanos, representados pelo Frei Beto. Sentiram essa necessidade de se mobilizar não para salvar as almas, mas para salvar os homens.

E como foi sua atuação?
Ao visitar as prisões, recebi a missão dos presos políticos de levar o alerta para a Europa. O Brasil sempre teve medo de parecer uma figura errada diante dos demais países. Como tinha acesso livre, coube a mim movimentar um pouco a Europa em favor do Brasil e acompanhar de perto a luta pela anistia, principalmente na França, na Suíça, na Suécia, na Itália, na Inglaterra, na Bélgica e na Polônia. Lá, me encontrava com representantes de organismos internacionais pela anistia. O mesmo eu fazia no Brasil, procurando sensibilizar as autoridades para o problema e para que a batalha se tornasse pública.

Quando começou a visitar os perseguidos, já sabia exatamente qual seria sua missão?
O que traga dessa experiência, que comecei quase sem querer, foi que durante as visitas é que amadureceu em mim o sentido da anistia. Tive a primeira experiência em 1970, quando visitei Tiradentes. Depois de uma pausa, recomecei em 1974, em Salvador, mais tarde, em 1976, passei por São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza e Brasília. Acompanhei de perto os presos políticos, convivi com eles frequentemente. Com o tempo, não ia mais como padre, mas como um amigo que estava lá para escutar, para viver de perto essa problemática. Vendo aquilo que acontecia, fiquei muito sensibilizado com o desrespeito aos direitos humanos daquelas pessoas. A mim não interessava qual religião professavam ou qual ideologia seguiam. Isso também era muito difícil saber, afinal eram 32 grupos de esquerda lutando contra a ditadura. Estando perto deles, recebia a confiança.

Ser religioso o ajudou ou também foi motivo de perseguição?
Algumas vezes ajudou, outras não. Várias vezes fui ameaçado de ser expulso e impedido de entrar em algumas prisões. Eles (as autoridades) desconfiavam de mim, mas não tinham provas. Quando me impediam, eu insistia, brigava e acabava conseguindo entrar. Dentro da igreja também sofri alguma resistência. Alguns bispos me apoiaram, outros chegaram a me proibir, mas não obedeci e continuei fazendo as visitas.

O senhor se sente satisfeito com o trabalho que fez? Poderia ter feito mais ou fez mais do que imaginava?
Quando comecei a conhecer os presos, ia mais como um padre para consolar um amigo. Depois pensei: que maluco eu sou! Senti que minha presença nas prisões foi a mais forte, a mais bonita, a mais dramática e a mais comovente de todo o meu sacerdócio. Senti que me tornei um padre diferente. Não era um padre que celebrava missa, que fazia catequese, mas um padre que fez parte da história do Brasil, que participava. Com isso, pude perceber também que os valores humanos de liberdade, justiça e de amor se encontrava também naqueles que não eram cristãos, naqueles que eram ateus. Cada homem carrega em si esses valores. E, foi isso que aprendi a valorizar. Como padre, prefiro conviver com um ateu que luta pela justiça, pela paz e pela liberdade, do que com um católico que freqüenta a igreja, mas vive fechado em si mesmo.

Publicado pela Gazeta do Povo, 28 de agosto de 2010.