Contos de farda, onde as balas nunca foram de borracha!

Começo este texto com uma piadinha que ouvi, há alguns anos atrás, na época da faculdade: uma competição internacional reuniu corporações policiais do mundo todo. O objetivo era que cada uma delas demonstrasse sua capacidade e efetividade na elucidação de casos. Ao início de cada prova, um coelho era solto num bosque, e os policiais, lançando mão de suas estratégias de investigação e ação, deveriam localizá-lo no menor tempo possível.

Primeiro foi a SWAT, que valendo-se de técnicas de resistência, atravessaram toda a mata fechada, córregos e pântanos, e em 3 horas e meia localizaram, encurralaram e trouxeram o coelho. Em seguida, foi a CIA, que valendo-se de moderna tecnologia de escuta e localização de corpos por satélites e instrumentos de precisão, localizaram, apreenderam e trouxeram o bichinho em menos de 3 horas. Por fim, a polícia brasileira adentrou a mata, lá permanecendo mais de 12 horas. Saiu de lá carregando um porquinho todo arrebentado e ensanguentado, que grunhia de dor e gritava: “Eu confesso, eu sou um coelho, eu sou um coelho!”

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Em agosto do ano passado, em Curitiba, a polícia militar paranaense adentrou uma comunidade (favela) para prender um suposto assaltante. Logo encontrou o que queria: Um jovem negro e pobre que, pelos estereótipos (sociais, raciais), serviria muito bem para elucidar o caso. Tratava-se de Ismael, de 19 anos, evangélico e servente de pedreiro, que teve o infeliz encontro com a PM paranaense. Segue o relato: 
“Ismael conta que às 17 horas do último sábado recebeu um telefonema de um amigo convidando-o para sair. Ele havia acabado de chegar em casa após o fim da jornada de trabalho. De banho tomado, montou na bicicleta e foi em direção ao ponto de encontro, na casa de um deles. Após pedalar por algumas quadras, foi avistado por uma viatura da PM que participa da Unidade do Paraná Seguro (UPS). Segundo ele, o veículo fez a volta e bloqueou a passagem. ‘Passou por nós, azar o seu. Cadê a arma?’, perguntou um dos policiais saindo da viatura. Ismael disse que não tinha qualquer arma. Outro policial o derrubou da bicicleta e, com o servente no chão, apertou-lhe a garganta. Outro deu um chute nas costelas e perguntou mais uma vez sobre uma arma. Ismael respondeu pedindo para que os policiais o acompanhassem até em casa, onde poderia apresentar documentos. Foi então colocado no camburão. Segundo ele, xingamentos racistas começaram a pipocar, e se tornaram a forma-padrão de tratamento até o fim do cativeiro. O rapaz demonstrou preocupação com a bicicleta, que permanecia tombada na rua. ‘Tua bike já era. Tu tá preso’, comunicou um policial. Dez minutos depois, a viatura chegou à casa de Ismael. (…) os policiais entraram na casa e começaram a vasculhar os cômodos, abrindo armários e jogando objetos no chão. Disseram que estavam procurando armas. ‘Temos um flagrante. Ele confessou que fez um assalto e a vítima já o reconheceu’, disse um PM. Enquanto isso, Ismael permanecia trancado na viatura estacionada do outro lado da rua. Ninguém podia vê-lo. Celso perguntou pelo funcionário. Os policiais foram até o camburão e retiraram o rapaz. Levaram-no até o quintal, mas não deixaram ninguém tocá-lo ou conversar com ele. (…) Após a busca no imóvel, que se revelou infrutífera, a patrulha foi embora levando Ismael. Os donos da casa perguntaram o que seria feito do garoto. Os policiais informaram que ele estava preso, mas não revelaram para qual delegacia seria levado. (…) O jovem, entretanto, não foi levado a uma delegacia. A primeira parada foi em um descampado. O servente diz ter identificado cinco policiais, que se alternaram distribuindo chutes, socos e estrangulamento. ‘Se você contar onde é a boca, a gente te solta’, teria dito um deles. (…) foi mais uma vez trancado no carro. Ele lembra que ficou um bom período na viatura parada, dentro do porta-malas, como se os policiais tivessem retornado ao posto. A próxima parada foi em uma construção pequena, com duas camas, três armários e um computador. Ismael supõe que se trata de um posto policial. Ali, segundo ele, voltou a ser agredido. Alguns rostos eram novos. Também foi submetido a choques no peito, nos genitais e na língua. ‘Vamos levar ele para a desova’, teria dito um dos homens. Ismael começou a rezar. Eram 21 horas quando Ismael da Conceição foi levado algemado até o Hospital Cajuru para tratar dos ferimentos. ‘Não diga que você está sentindo dor’, ameaçou o homem que o escoltava. Às 22h30, foi finalmente entregue ao 8º DP. (…) Na delegacia, os PMs apresentaram uma arma de brinquedo como pertencente a Ismael. (…) (Fonte: http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questao-racial/violencia-racial/19843-policiais-torturam-jovem-negro-com-choques-nos-genitais-e-na-lingua-oab-denuncia-barbarie)
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Em 10 de outubro de 1997, na cidade de Foz do Iguaçu, uma diligência da polícia civil, incluindo um delegado, terminou com o assassinato de 4 jovens pobres moradores de uma área conhecida como “favela  Monsenhor Guilherme”. Os policiais alegaram se tratar de um suposto confronto armado, mas os quatro jovens mortos tinham marcas de execução. Adenilson Dias de Matos, 17 anos, foi morto com seis tiros, sendo três na cabeça, dois no tórax e um na perna. Eli de Oliveira, 18, morreu com quatro disparos, dos quais três na cabeça e um no braço esquerdo. Giovani Medina, 17, e Arnaldo Oziel Mongelos, 16, morreram também por tiros na cabeça. Nenhum policial foi ferido no “confronto”. Os jovens eram evangélicos, e moravam nesta favela. Em 2002, o juiz criminal Eduardo Casagrande Sarrão considerou as mortes homicídios qualificados e ordenou que os réus fossem levados a júri popular. Desde então, a papelada só fez aumentar devidos aos inúmeros recursos, agravos e outros instrumentos jurídicos utilizados pela defesa para evitar o julgamento do grupo de policiais da 6ª Subdivisão Policial (SDP). O processo, julgado na 1ª Vara Criminal de Foz do Iguaçu, correu de forma lenta.  A defesa dos policiais esgotou os recursos nas instâncias superiores, e o processo voltou para a Comarca de Foz do Iguaçu, onde permaneceu vários anos parado, devido ao ‘excesso de ações no juizado’. Em 2008, 11 anos depois da chacina, e mesmo a justiça já tendo decidido favoravelmente aos familiares das vítimas, os policiais continuavam soltos, a maioria dos quais na ativa. Um dos envolvidos na matança, por exemplo, é o policial civil Luiz Carlos Durieux, que não apenas segue livre, como também até recentemente (2009-2012) integrava a diretoria executiva do SINCLAPOL – Sindicato das Classes Policiais Civis do Estado do Paraná. Já o delegado que ordenou a chacina, Antonio Donizete Botelho, é atualmente o titular da 20.ª Subdivisão Policial, na cidade de Toledo – Oeste do Paraná. Para assassinos com distintivos, a justiça tarda, e sempre falha.
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Na noite do dia 11 de agosto de 2011, dois ocupantes de uma motocicleta assassinaram a tiros a juíza Patrícia Acioli, quando ela estacionava seu carro na garagem de casa, em Niterói, estado do Rio de Janeiro. Algumas horas antes de morrer, a magistrada havia expedido mandados de prisão contra PMs, que eram réus em processos conhecidos como “Autos de Resistência” – quando há enfrentamento armado entre policiais e bandidos, resultando em mortes. A juíza investigava grupos de extermínio ligados a milícias (grupos criminosos com ramificações políticas e nas forças policiais) que atuam na Baixada Fluminense. Além de realizar homicídios, as milícias também controlam esquemas de corrupção que vão desde a compra de políticos (partidos de aluguel, eleição de parlamentares e arrecadação de dinheiro para campanhas políticas) a concessão de serviços clandestinos (TV à Cabo, internet, transporte público ilegal, comércio local, etc), além de armas e tráfico de drogas. Hoje, sabe-se  que muitos destes “Autos de Resistência” foram forjados para encobrir o assassinato sistemático de testemunhas, “traidores” do grupo e até membros de facções rivais que disputam o mesmo território do crime. A juíza Patrícia Acioli percebeu inconsistências nestes “Autos de Resistência” e começou a desvendar a ampla rede de corrupção e violência incrustada nas corporações policiais brasileiras. Sua descoberta custou sua vida. Não foi a primeira vítima. E não será a última.
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A última página deste sangrento dossiê da violência policial teve lugar aqui no Paraná. Ganhou destaque a selvagem atuação das forças policiais na elucidação do crime de assassinato e suposto estupro da menina Tayná Adriane da Silva, de 14 anos, ocorrido na região metropolitana de Curitiba no final do mês passado. Infelizmente, não foi uma ação isolada de “maus policiais”, como sugeriu o Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná, Cid Vasques. Também não era apenas contra a chamada “banda podre” que a juíza Patrícia Acioli lutava no momento de sua morte. Isso porque apesar de nem todo policial ser corrupto, violento e assassino, o fato é que a violência e a selvageria já se institucionalizou – e é moralmente aceita – como parte cotidiana das ações policiais, especialmente quando se trata de reprimir pobres, negros e desdentados que vivem nas periferias. Há muito tempo, os movimentos sociais, coletivos culturais e entidades de Direitos Humanos vêm denunciando a violência que já se naturalizou nestas áreas, onde a polícia adentra barracos sem mandato, sequestra moradores e pratica o terrorismo físico e psicológico, tortura, executa e forja confissões e documentos para produzir a “verdade” que lhe convém. As torturas, os assassinatos a sangue frio, as prisões arbitrárias, a intimidação, os espancamentos e as extorsões já se tornaram parte rotineira nos porões das delegacias, batalhões de polícia e nas vielas das periferias pobres brasileiras. O médico Dráuzio Varela, em seu livro  “Estação Carandiru”, recupera a fala de um agente de segurança (carcereiro) que lhe dizia que ninguém faz concurso para bater em presos. Por trás de cada policial e agente da lei, há uma família, uma história de vida simples, amigos, filhos, valores, dificuldades…  Mas o fetiche da farda e do distintivo transforma muitos destes pais de famílias em assassinos e torturadores. Quem não se lembra do policial conhecido como “Rambo” (apelido do PM Otávio Lourenço Gambra), um dos protagonistas do massacre na Favela da Naval, em Diadema, na grande São Paulo? Em 1997, Rambo e seus colegas de farda foram filmados durante vários dias promovendo extorsões, cobrando pedágio de supostos criminosos, humilhando e espancando trabalhadores, e executando a sangue frio pessoas, enquanto riam. Sem a farda, Otávio Lourenço era apenas um pai de família, casado, bom marido e músico de uma igreja evangélica. Um cidadão comum. Um homem “de bem”, no dizer do discurso moralista. A farda transformava o pai de família evangélico em um assassino frio e bandido de distintivo. Certamente  não foi o único. Por isso, a questão não se resolve simplesmente separando os “maus policiais” dos “bons policiais”, porque, a rigor, todo policial fardado e/ou com distintivo é potencialmente um assassino, um torturador, um falsificador de documentos (B.Os, confissões forjadas, alteração de cena de crimes, etc) que, no limite, não irá pensar duas vezes para forjar “Autos de Resistência”, a fim de livrar a si e a seus companheiros de processos por homicídios, extorsões e torturas. Neste caso, não vejo a diferença entre estes agentes da lei e os criminosos comuns, exceto pela farda e pelo distintivo. A sociedade insiste em acreditar que os crimes cometidos pelos “agentes da lei” são justificáveis porque garantem a paz e a justiça. Na favela, onde as balas nunca foram de borracha, “paz” e “justiça” são duas utopias que jamais se concretizaram. Ali, como as UPPs cariocas vieram confirmar, “paz” sem voz não é paz; é medo.

 
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A cultura da violência fez triunfar a ideia de que, sem a força bruta, não há crime solucionado. Em nome da solução de um crime, outros tantos passam a ser praticados e justificados. As vítimas são sempre as mesmas. A violência física e psicológica, a intimidação, a tortura, a privação e o terrorismo já estão institucionalizadas em nossas forças de repressão, e nos porões das delegacias, nas sessões de interrogatórios e nos presídios, onde a lei simplesmente não existe, e a vida e integridade física do detido torna-se dependente do humor – e da obstinação cega – de delegados, policiais e investigadores, que preferem o atalho da selvagem tortura ao trabalhoso processo de investigação científica e racional. O caso dos 4 trabalhadores do parque de diversões detidos e torturados no processo da menina Tayná, infelizmente, não é uma triste exceção; é a própria regra. Nas últimas semanas, a classe média brasileira descobriu o amargo gosto das bombas de efeito moral, dos sprays de pimenta e das doloridas balas de borracha, e se revoltou. Mas enquanto a polícia dispersava com balas de borracha, jatos d’água e spray de pimenta os manifestantes que, diante das câmeras de TV, se aglomeravam no centro do Rio de Janeiro, o BOPE, sem cobertura midiática alguma, entrou na Favela da Maré e matou 8 moradores, indistintamente. Ali, as balas eram de verdade. Nos Boletins de Ocorrência e nas alegações policiais, a palavra mágica que há séculos, desde a época dos quilombos, justifica o extermínio e a matança da população pobre e negra pelas forças de repressão: “confronto”. Patrícia Acioli sabia da leviandade deste argumento. E apesar de sua morte, os “Autos de Resistência” continuam sendo forjados, à revelia da classe média que se diverte nas baladas noturnas, enquanto na periferia a polícia arrebenta portas de barracos sem mandato, e coloca armas na cabeça de trabalhadores, crianças e mulheres, espanca idosos, estupra e humilha moças e assassina jovens. Na calada da noite ou a plena luz do dia, barracos e vielas das periferias são verdadeiras fábricas de depoimentos e confissões forçadas, onde o Estado e as elites despejam todo seu ódio, e cria os “bodes expiatórios” que justificam as anomalias e erros de um sistema social e econômico desigual e injusto. É ali, nessa selva social, que porcos viram coelhos, e homens de farda viram porcos.

 
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* O autor é historiador e professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR – Campo Mourão